Já deu hoje?

ou Sobre Vencer o Hábito da Acumulação

Todo mundo tem alguma tralha que guarda e não usa. Alguns em maiores proporções que outros. Eu sou do tipo que guarda muita tralha, ou era. Todo mundo sabe o que é tralha: algum objeto que já foi de uso providencial e hoje não tem mais utilidade. Não pelo desgaste, mas é que hoje você não tem mais necessidade dele, e alguém certamente se beneficiaria do seu uso.

Comigo não, até pouco tempo atrás eu guardava quase tudo. Até camisa velha da época de faculdade eu guardava, rasgada, pelo sentimento de não querer que a memória fosse embora eu me apegava ao trapo rasgado. Quem guarda pensa que um dia aquilo pode ser de grande valia, um dia você acaba precisando e descobre que pode fazer bom uso daquela tralha que está ali no seu armário de bagunça. Só quem tem o espírito acumulador pode entender esta afirmação. Eu tenho, estou tentando apaziguar esta minha característica, mas eu conheço os motivos para se guardar objetos que todo mundo acha (ou melhor, tem certeza) que você não vai usar. Um dia você usa.

Da faculdade mesmo tenho um exemplo clássico de acumulação que pode ser usado como justificativa para guardar quase tudo. Deixa eu explicar: primeira festa depois de ganhas as eleições do centro acadêmico, nós da chapa CAtitude promovemos uma festa na Vila dos Diretórios, que foi amplamente anunciada com pôsteres de cartolina pela universidade e uma faixa – A FAIXA – com os dizeres convidando para a festa. Acaba a festa e um pragmático pensaria: joga a faixa fora, afinal de contas não tem mais festa para convidarmos ninguém. Não eu: guardo a faixa. Para que eu precisava de uma faixa com escritos de uma festa que já passou!? Bati o pé e guardei a faixa num cantinho: “aqui é o meu cantinho, vai ter a minha faixa”. Por tempo indeterminado até que se encontre um bom uso para ela. Mais de um ano depois encontramos um excelente uso para ela e eu me gabei disto até depois do fim da faculdade (e convenhamos até hoje rs). Esta é a parte que justifica: acumular é bom, um dia você pode precisar. Mas quando?

monica12Acontece que a não ser que você tenha um contêiner ou tenha muito, mas muito espaço, esta acumulação pode ser prejudicial para você e o ambiente onde vive. Já imaginou que o cantinho da bagunça pode virar o armário da bagunça, que vira o quartinho da bagunça que pode virar até a casa da bagunça? Alguém lembra do quarto da bagunça da Mônica no Friends? Conheço gente que tem destes em casa…

A minha cura da acumulação começou com o caso de roupas. Eu vim sendo curado pelas campanhas do agasalho desde que morei em Curitiba. “Mais de um ano sem usar, tá na hora de doar”. “Agasalho, cobertor, doar é um ato de amor”, tudo influência da capital mais fria do Brasil, que me fez doar algumas roupas boas até, mas que eu não usava há tempos. Campanhas como a do agasalho nem deveriam precisar de explicação, elas por si só já mostram que se você tem roupas sem uso, a vida de alguém necessitado pode ser salva por sua causa. Um casaco doado em Curitiba tem literalmente o poder de salvar uma vida. Vale lembrar, Curitiba é a capital onde velhinha mendiga rouba o supermercado no inverno só para ser presa e ter onde dormir e não morrer de frio.

Mas, e o resto…?

Dar sentido às coisas é dar uso a elas

E aqueles seus livros de cálculo diferencial e os de inglês que estavam na estante e você não lê há mais de dez anos? Tem alguém nas redondezas que poderia se beneficiar do conteúdo deles? Se você for a favor de movimentar a economia pode deixar em um sebo ou anunciar na OLX ou Mercado Livre, mas se quiser fazer bem à comunidade sem a (pouca) grana que uma venda desta lhe trará, que tal uma biblioteca de universidade perto de você para a doação? Livro na estante não cumpre o seu objetivo.

E aquela sua Robofoot, a bota que você imobiliza seu pé quando torce? Que você usou há dois anos quando torceu seu pé? Neste exemplo a veia acumuladora tem um raciocínio e desculpa extremamente útil: se um dia eu torcer o pé de novo posso utilizá-la! Caramba, sério que você está esperando torcer o pé? Será que alguém que acabou de torcer o pé poderia se beneficiar do uso dela?

E o seu monitor do computador que já não usa? (Hoje em dia alguém usa um computador que não seja um notebook?) “Ahhh mas monitor é muito caro para sair doando assim!” É verdade, mas será que não tem uma escola nas redondezas onde as crianças poderiam se beneficiar do seu uso?

Confesso: é MUITO DIFÍCIL para alguém com a veia acumuladora bem desenvolvida poder se desapegar de objetos que tem. Requer uma dose de desapego e outra de obsessão por arrumação da casa. Com o tempo eu fui entendendo que dar sentido às coisas é dar uso a elas. Quer dizer, um martelo foi feito para martelar coisas e não para ser um entre os cinco martelos parados dentro da mesma caixa de ferramentas. Doa-se os outros quatro para que eles possam “ser martelos” e sair martelando coisas por aí.

“O acesso é melhor que a posse”
Temacucar.com

Aí é que entra algumas iniciativas que eu conheci nos últimos tempos e são de extremo bom uso, como o Freecycle e o “Tem Açúcar”.

tem_acucar
http://www.temacucar.com

O Tem Açúcar  é uma comunidade de empréstimo de ferramentas e objetos em geral entre vizinhos. E faz um mega sentido se pensarmos “será que realmente todos os apartamentos precisam ter uma furadeira? ”. Um dos motes do pessoal do “Tem Açúcar” que eu achei demais é “O Acesso é melhor que a posse”.

 

 

freecycle_logoJá o Freecycle é uma comunidade de doação local que tem o objetivo de fazer as coisas circularem. O objetivo do free-cycling não é obter bens gratuitamente, mas evitar que objetos ainda utilizáveis vão para lixeiras. Já doei livros paradidáticos de inglês, luminárias, cortina entre as outras coisas que dei de exemplo acima.
Já recebi dois telefones, daqueles do tipo antiguidade – e aqui foi a minha veia acumuladora que teve uma recaída.

A história que me motivou a escrever esta publicação aconteceu nesta semana quando anunciei a Robofoot e alguém me pediu. O Marcelo disse que tinha torcido o pé recentemente e não conseguia buscar no meu bairro. Por sorte do cara eu ia passar próximo da casa dele e levei lá. Por sorte do cara não: por sorte minha, porque a doação no fim das contas me fez bem: conheci a história do Marcelo, sua família e de quebra ganhei um livro sobre o maitre-corredor Oswaldo Silveira que fala sobre suas experiências na vida profissional e também momentos da vida de corredor. Nunca tinha ouvido falar sobre o livro e lá mesmo li um pedaço da introdução:

“A dor é passageira… desistir é para sempre…”
Oswaldo Silveira, após obter o primeiro lugar na sua categoria)
na maratona de NY, 2010

Estas coincidências todas me emocionaram e eu me despedi correndo dizendo que estava atrasado para um compromisso para não ter que encarar os sentimentos que estavam surgindo ali. Descobri que existem referências ótimas da história do Oswaldo. Agora, como follow desta publicação, precisarei contar sobre o livro e dizer se o conteúdo é tão bom quanto foi a experiência, a introdução, a Folha e o título fizeram crer.

Nestas questões de praticar o desapego material e doar o que não tem mais uso para mim, de quebra a minha casa está ficando mais arrumada, sem tralhas, sem espaços que viram buracos negros. Claro, a não ser por uma coisa ou outra, aqui e ali.

E você, ficou com vontade de dar depois desta publicação?

O que você tem há tanto tempo e já deveria ter se desfeito que dá até vergonha de contar?

13 comentários em “Já deu hoje?”

  1. Excelente o tema!
    Podemos transformar aquilo que estava somente ocupando espaço em uma nova peça útil!
    Podemos doar e enriquecer a vida de outras pessoas!
    Dependendo da peça, podemos até vender para interassados que darão a ela uma razão de existir!
    Dependendo do que desapegamos, ganhamos espaços importantes em nossos armários e em nossas vidas!
    Iniciei muito bem o meu dia, com o seu texto.
    Muito obrigado

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  2. Rapazzzzzz. . .
    E eu achei que era o último dos Acumuladores… Agora tenho certeza… Mas, estou a caminho… a dica foi saber que vc conheceu entre páginas o meu querido amigo de mais de 15 anos. O Gentleman… Srº Oswaldo Silveira que por muitos anos corremos e eu esperava na chegada dos 16k da Volta ao Cristo. E quem voltou cheio de mensagens e carinho … trazido por você e digo: NUNCA é COINCIDÊNCIA quando o coração bate mais forte e a emoção nos empurra a ler o texto até o final.. mesmo embaçado por lágrimas. É resultado do melhor acúmulo que temos na vida… o de EMOÇÕES que aprendemos com PESSOAS BOAS….
    Obrigado Sr. Oswaldo… e obrigado a você Leo Wanderlei.
    E assim seguimos, agradecendo e fazendo circular a energia e a vibração positiva que essas “coincidências” vem nos ensinar a viver melhor.
    O B R I G A D O !

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  3. Eu fui um dos mais outros com vc guardar a faixa né. Mas anos depois, já formados, indo buscar as fotos da formatura lembro q eu tinha tirado meus Sisos e o dentista perguntou se eu queria levar e eu disse “Óbvio q não, quem fica guardando dente velho?” Ao vc disse q guardava os seus e eu perguntei “Pq???????? Vc nunca vai usar isso de novo” e vc me respondeu “vc disse a mesma coisa da faixa do Daaf ” com um sorriso de vitória no rosto hahahaha

    Eu tenho umas coisas q acumulo tb. Peças e cabos de computador são um. Tenho uma gaveta com todos os cabos e peças de roteadores, câmeras digitais etc.

    Mas hj eu tento forçar me desfazer de tudo. Não sem pesar, mas pelo prazer de ter espaço e coisas arrumadas

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